“O dono de obra”
Temos todos falado e conversado muito, em conferências, podcasts e webinares, incluindo os momentos de partilha de mérito, mais ou menos sustentável.
Porém, as dificuldades avolumam-se, seja pela complexidade de organização, adaptabilidade de recursos, sofisticação de processos e outros determinantes sobejamente conhecidos, culminando em resultados muito aquém do que a sociedade necessita e exige do setor.
A recente decisão de nomear um líder (executivo) para o sistema de saúde é promissora, pelo que se pode agora questionar, ao nível dos sistemas de informação, fator reconhecidamente estratégico e critico, para edificar uma transição que responda a muitos dos desafios da saúde, se não deveria ser claro para todos quem coordena a iniciativa digital (CIO), a par do responsável pela segurança da informação que é tratada (CISO)?
Numa analogia com a engenharia civil, área madura com mais de 2 séculos, edifica-se uma obra a partir de um propósito de alguém (o dono de obra). Requer o recurso a arquitetos que idealizam, a engenheiros (e múltiplos profissionais), que executam. Mas obriga também ao fiscal e vários outros especialistas, fundamentais para garantir a conformidade legal, técnica, o respeito pelo caderno de encargos e os custos, visando almejar a proposta de valor subjacente a essa edificação.
Ora, quem será o “dono de obra” que governa o nosso ecossistema de informação?
- Podemos assumir que será a ACSS, dado que detém a verba?
- Será que é antes a SPMS porque executa?
- Deveria ser a DGS já que determina o normativo técnico de saúde?
- Ou antes o INFARMED, dada a preponderância que a tecnologia do medicamento ou dispositivo têm no sistema?
- E o papel dos reguladores ou punidores, como a ERS ou a IGAS?
Uma vez assumido o papel da liderança, seja ao nível global ou local, à boa governança não chega ter fundos de financiamento “ilimitados”, sem uma visão e uma estratégia partilhada e conhecida por todos, galvanizando e motivando os profissionais para a mudança, acreditando que aquela execução será de valor. E por outro lado, tendo a visão do todo “enterprise wide”, assegurando que os investimentos para “isto” e para ”aquilo” e que decorram “aqui” e “ali”, sejam “peças do mesmo puzzle”, realizando os benefícios e otimizando o risco e os recursos.
Não seria útil fazermos uma “revisão da literatura”, consultando tanto do que já foi dito, avaliado e diagnosticado?
Sem desprimor para os demais, os dois trabalhos do Health Parliament Portugal são apenas um bom exemplo do que merecia ser considerado. Ou o último Relatório da Primavera do OPSS, porventura o mais objetivo dos últimos 20 anos, no que concerne ao impacto dos sistemas de informação na Saúde. E aqui chegados, bastará pesquisar pela palavra “interoperabilidade” ao longo dos anos, para compreender como esta infraestrutura foi negligenciada.
Hoje, ninguém descarta que a interoperabilidade entre sistemas, através da normalização técnica dos artefactos e semântica dos dados, é vital para se alcançar os benefícios esperados. Há décadas que outros setores da sociedade normalizam os dados, a prática de registo, adotando standards. E o facto do Regulamento Nacional de Interoperabilidade Digital (RNID), ainda não incluir qualquer referência aos standards e catálogos a adotar nas implementações no ecossistema de informação da Saúde, não facilita. Perpetuando um mercado em que uns publicitam boas-práticas, mas na realidade engendram a sua própria interpretação dos standards, incrementando esforço, custo e embaraçando as organizações na escolha pelos melhores implementadores, limitando ainda a entrada de startups no setor, o que acaba por representar uma limitação à inovação. Por ventura, um dos fatores pelo qual as nossas startups têm tanto sucesso fora e pouca representatividade e impacto no nosso próprio mercado.
Ainda a este propósito a medida do Plano de Ação para a Transição Digital que concretiza os selos de maturidade digital, poderia acrescentar agora a dimensão interoperabilidade a par das atuais (acessibilidade, privacidade, sustentabilidade e cibersegurança).
Por último, uma palavra sobre os tecnólogos que no dia-a-dia suportam e dinamizam toda a infraestrutura que sustenta o ecossistema de informação e seus atores. Para sublinhar que a erosão de recursos especializados na Administração Publica, incluindo a parca iniciativa de formação e requalificação deveriam merecer dedicada atenção, sob pena dos projetos ditos estratégicos e transformadores ficaram pelo caminho, por falta de executantes.
Membro da e-mais
Carlos Sousa