Editorial: Rumo a uma Medicina Digital Minimamente Perturbadora

A revolução digital é frequentemente citada como a panaceia para os desafios de sustentabilidade enfrentados pelos sistemas de saúde em todo o mundo. No terreno, após mais de quatro décadas de informatização dos serviços clínicos, a realidade é bem distinta e o prometido benefício tarda a evidenciar-se. Um recente artigo de opinião, publicado no British Medical Journal1, oferece uma perspectiva crucial e cautelosa sobre o desenvolvimento desenfreado e desintegrado de soluções tecnológicas na medicina.

Os autores destacam uma preocupação fundamental: a possibilidade de que a proliferação desordenada de inovações digitais possa, paradoxalmente, tornar-se demasiado disruptiva para os pacientes e profissionais de saúde. O avanço tecnológico, quando não devidamente equilibrado com considerações humanísticas, pode gerar necessidades excessivas e despersonalizar os cuidados de saúde. Para mitigar esses riscos, os autores propõem cinco princípios orientadores para o desenvolvimento de uma medicina digital “minimamente perturbadora”.

Em primeiro lugar, é essencial respeitar a natureza humanista dos cuidados de saúde, procurando enriquecer, e não substituir, o contacto humano e a singularidade de cada caso. Isso requer o envolvimento ativo dos utilizadores no desenvolvimento de soluções adaptadas às suas necessidades individuais.

Além disso, a imposição indiscriminada de soluções digitais deve ser evitada. Reconhecendo que nem todos os doentes estão dispostos e são capazes de utilizar essas tecnologias, é fundamental oferecer opções personalizadas e respeitar as preferências individuais.

Outro aspecto crucial é a promoção do envolvimento das pessoas a longo prazo, visando reduzir a taxa de abandono das soluções preconizadas. Para isso, deve assegurar-se a personalização da experiência de saúde, levando em conta as diferentes fases da vida, as necessidades e a disponibilidade dos utilizadores.

A crescente prevalência da multimorbilidade também deve ser considerada. À medida que a população envelhece, cada vez mais pessoas lidam com múltiplos problemas de saúde simultaneamente. Logo, é imperativo evitar soluções fragmentadas ou redundantes, garantindo uma abordagem holística e integrada.

Por fim, não podemos ignorar a carga de trabalho adicional imposta aos profissionais de saúde pela implementação de sistemas digitais. É essencial desenvolver soluções que não apenas atendam às necessidades dos pacientes, mas também facilitem o trabalho dos profissionais de saúde, integrando-se de forma eficaz no sistema, que deve ser tratado como um todo.

Este conjunto de princípios oferece uma estrutura valiosa para o desenvolvimento responsável da medicina digital, destacando a importância de colocar as necessidades humanas no centro da inovação tecnológica em saúde. À medida que avançamos nessa jornada, é crucial que permaneçamos vigilantes e comprometidos com uma abordagem que promova a qualidade, a acessibilidade e a humanização dos cuidados de saúde.

A evolução da medicina digital exigirá, sem dúvida, uma integração cada vez maior de dados e cuidados de saúde. Devemos abraçar esse desafio com criatividade, rigor técnico e determinação, assegurando que a tecnologia sirva como uma ferramenta poderosa para melhorar a saúde e o bem-estar de todos.

  1. Lenfant T, Ravaud P, Montori VM, Berntsen GR, Tran VT. Five principles for the development of minimally disruptive digital medicine. BMJ. 2023;383:p2960. doi:10.1136/bmj.p2960

Pedro Leuschner

Categorias: Crónica

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